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29 DE MARÇO DE 1952

Relato da chegada do «Vera Cruz» a Santos

A chegada de um transatlântico em viagem inaugural a Santos, como a do Vera Cruz, em 1952, representava mais que uma curiosidade de milhares de pessoas que se aglomeravam junto às muretas da Ponta da Praia. Era um acontecimento político, social e cultural dos mais importantes envolvendo Brasil e Portugal.
Não era sem razão que essa viagem inaugural, especificamente, ao tocar no porto do Rio de Janeiro, em 29 de março de 1952 (um sábado), o navio trazia a bordo dezenas de editores e jornalistas dos principais jornais portugueses, para registrar nos diários lusitanos, por exemplo, a acolhida que o Vera Cruz teve assim que sua silhueta surgiu na Baía da Guanabara.

Vinham a bordo também dezenas de intelectuais, da chamada Missão Cultural Portuguesa, formada por escritores, professores, historiadores e cantores que durante 10 dias percorreram as mais famosas casas de espetáculos do eixo Rio-São Paulo e as casas luso-brasileiras.

Com suas linhas retas e modernas, o transatlântico português entrou pela primeira vez em Santos em 3/4/1952

Emoção - A recepção a todos foi de grande emoção. Vale aqui reproduzir as palavras do fundador e presidente da empresa do navio, a Companhia Colonial de Navegação, Bernardino Correa, a um jornal carioca, no dia seguinte ao da chegada do Vera Cruz:
"Dominado por forte impressão que me produziu o apoteótico acolhimento dispensado ao Vera Cruz nas águas da Guanabara, tudo quanto posso dizer é que me sinto feliz por chegar, pela primeira vez, à capital da grande nação brasileira e que agradeço a Deus por ter-me proporcionado viver estes momentos inolvidáveis.
Acrescentarei que a presença do Vera Cruz, no Rio de Janeiro - cujos panoramas surpreendentes a todos nos deixaram extasiados com tamanha beleza - significa que a Companhia Colonial de Navegação se mantém fiel aos seus propósitos de prosseguir no rumo de estreitar o amplexo constante de brasileiros e portugueses através do Atlântico.

Mais de 10 anos de linha marítima regular entre Lisboa e o Rio de Janeiro - serviço mantido por vezes em épocas particularmente difíceis como foram os anos da última guerra - são testemunho suficiente desses nossos propósitos e justificam o aparecimento, esta manhã, nas águas da Guanabara, do maior navio português de todos os tempos, construído expressamente para navegar entre o Brasil e Portugal.
Os brasileiros e portugueses do Brasil compreenderam admiravelmente o nosso esforço quando tributaram hoje, a este navio, o acolhimento profundamente fraterno que teve o Vera Cruz, ao surgir diante desta capital esplendorosa que é o Rio de Janeiro."


IMAGEM: Cardápio do almoço de 26/4/1957 no Vera Cruz: acepipes, posta de pargo e dobrada à moda do Porto

Honra - Sabe-se hoje que as palavras do comandante Bernardino Correa não eram um exagero, embora dessem margem a supor isso. Sua impressão era autêntica, porque autênticas eram as manifestações de brasileiros e de portugueses do Brasil (como ele mesmo mencionou) em torno da chegada de um navio que na época se transformou no marco de honra, para todos, de que o Vera Cruz materializava o maior navio português de todos os tempos, a expansão do comércio marítimo pelo Atlântico, a segurança, o respeito ao passageiro e a glória da navegação lusa.

Viajei por duas vezes no Vera Cruz. Muitos parentes e conhecidos que também viajaram são testemunhas de que o navio representou e representa um marco na navegação moderna. Não há português ou brasileiro que, tendo cruzado o Atlântico nessa embarcação, deixe de lembrar com emoção de detalhes da viagem e do significado dessa época, só comparável à era dos grandes aviões transatlânticos, que vieram para substituir esses heróicos navios.

Também o Vera Cruz antecipou-se curiosamente a esse destino fatal. Em sua viagem inaugural ao Brasil, tinha entre seus ilustres passageiros o glorioso almirante Gago Coutinho, o primeiro a sobrevoar o Atlântico unindo as duas pátrias irmãs, em 1922, junto com o aviador Sacadura Cabral. A vinda de Gago Coutinho no maior navio português era, por si só, o reconhecimento mútuo de respeito entre o ar e o mar.
Vargas - O ponto alto da escala do Vera Cruz no Rio foi a recepção ao presidente Getúlio Vargas, acompanhado da esposa Darcy e de alguns ministros. A comitiva percorreu as dependências do navio e depois participou de almoço a bordo, com autoridades portuguesas. Houve, depois, banquete de retribuição no Itamarati.


FOTO: Atracado em Santos, em uma de suas viagens, durante os oito anos em que fez a linha para o Brasil

Conforto e modernidade - Na madrugada do dia 3 de abril (quinta-feira), o Vera Cruz deixou o Rio rumo a Santos, chegando à barra às 13 horas. A recepção nada ficou devendo à do Rio. Milhares de brasileiros e de portugueses residentes em São Paulo juntaram-se aos da Baixada Santista para receber o navio, trazido pelo prático Gérson da Costa Fonseca.

O calor da recepção pode ser medido em metade da última página da edição do dia 4 de abril de 1952 de A Tribuna, onde se lia a manchete: "Grande curiosidade popular marcou a chegada ontem ao porto do Vera Cruz". E com a linha de apoio, logo abaixo: "Milhares de pessoas compareceram à recepção dada a bordo. Enorme massa popular se aglomerava no cais. Verdadeira multidão assistiu à passagem na barra".
Superlativos - A matéria descrevia o navio com superlativos: "Os melhores artistas de Lisboa foram contratados para executar as decorações de seus interiores, nos quais se destaca um painel de Manuel da Lapa, com todos os tipos de embarcações desde o século XVI. A pintora Estrela Faria contribuiu com um quadro sobre Lisboa, que é considerado uma notável obra de arte, havendo porém outros exemplares do talento artístico da atual geração portuguesa".

Mais: "Um jardim de inverno apresenta uma profusão deslumbrante de plantas, ao qual a iluminação adequada, imitando o luar, dá, à noite, um encanto extraordinário para cujo aumento contribui a existência de um aviário com bicos de lacre e outras aves, cuja sobrevivência é assegurada por um sistema de aquecimento e ar condicionado do recinto, onde se encontram num ambiente que reproduz o seu habitat natural.

"Duas excelentes piscinas, ginásio com todo o aparelhamento de ginástica, inclusive remadores e bicicletas fixas, um salão de jogos, court de tênis, uma cabine de rádio para transmitir programas para os 230 alto-falantes de bordo, com recente coleção de discos de músicas clássica e moderna, uma capela com imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, amplos salões e confortável mobiliário etc., tudo foi planejado e executado de maneira a dar aos passageiros a mais agradável impressão e o máximo de bem estar durante a viagem".

Este Vera Cruz foi o mesmo que trouxe milhares de imigrantes e que os levou a passeio a Portugal, com os filhos brasileiros, nos oito anos que se seguiram, bem menos do que desejava em seu discurso na viagem inaugural o dono do navio, Bernardino Correa, que morrera em 1957.

Até que, em 1961, vários navios, incluindo o Vera Cruz, foram requisitados para transportar tropas e material bélico entre Portugal e as colônias da África, já em movimento de libertação. Esta fase durou até 1971. Em janeiro de 1972, o navio foi ancorado no Rio Tejo. No ano seguinte, apenas 21 anos após a viagem inaugural, a 4 de março de 1973, o Vera Cruz, vendido para desmonte e sucata a uma empresa de Taiwan, deixou o Tejo rumo ao seu fim, entrando definitivamente nas páginas da história e na memória de seus privilegiados passageiros.

Artigo de José Carlos Silvares, jornalista em Santos, actuando como editor adjunto no jornal santista A Tribuna, quando este artigo foi publicado (em 30/3/1997). Colaborou também na primeira edição do livro Rota de Ouro e Prata, de José Carlos Rossini, lançado em 1995.







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