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Um Mergulho na História | Por Alexandre Monteiro
Neste dia 5 de Abril, mas de 1673, o naufrágio do «Indien» na barra de Lisboa
Poucos nomes europeus do século XVII estão tão intimamente ligados ao Japão como o de François Caron - uma figura fascinante que, nascido no seio de uma família huguenote refugiada, se tornou um dos maiores conhecedores do Japão da sua época, um homem de fé e de diplomacia, e protagonista de duas carreiras distintas: ao serviço da Companhia Neerlandesa das Índias Orientais e, mais tarde, da França de Luís XIV.
Nascido em Bruxelas, em 1600, numa família protestante francesa fugida das guerras religiosas, Caron cresceu no seio de uma comunidade huguenote exilada nos Países Baixos. Ainda jovem, a família foi forçada a fugir novamente, desta vez para as Províncias Unidas, para escapar à violência espanhola nas Flandres.
Nada se sabe da sua juventude ou educação, mas os valores que viria a demonstrar ao longo da vida - integridade, fidelidade à fé protestante, rigor comercial e destreza diplomática - indiciam uma sólida formação académica, comercial e moral.
Aos 19 anos, em 1619, Caron embarcou numa das naus da Companhia Neerlandesa das Índias Orientais (VOC) rumo ao Oriente.
A viagem, que durava cerca de dois anos, levou-o até à ilha japonesa de Hirado, onde a Companhia mantinha um entreposto comercial. Chegado como simples ajudante de cozinha, permaneceu no Japão durante mais de duas décadas, ascendendo aí aos mais altos cargos.
Durante esse tempo, Caron casou à moda local com uma mulher japonesa e com ela teve vários filhos. Aprendeu fluentemente a língua e tornou-se um intermediário, um verdadeiro mediado cultural, respeitado entre os neerlandeses e os japoneses. Em 1634, já era adjunto do chefe do posto de Hirado, demonstrando grande habilidade em gerir crises e respeitando profundamente os códigos de honra e de cetiqueta japoneses.
A sua estadia coincidiu com um dos períodos mais turbulentos da história japonesa. Entre 1600 e 1638, o poder foi consolidado pela dinastia Tokugawa, que instituiu um governo militar centralizado (o bakufu) e lançou uma campanha brutal de repressão contra o cristianismo. A revolta de Shimabara (1637–38), protagonizada por camponeses cristãos, foi sufocada com extrema violência, o que levou à erradicação completa da fé cristã do arquipélago.
Apesar do clima hostil, Caron manteve-se influente e respeitado. Em 1636, foi convidado a responder a um extenso questionário sobre o Japão, encomendado pelo diretor-geral da Companhia, em Batávia. As suas 31 respostas formam um retrato sóbrio, preciso e valioso do Japão feudal - descrevendo desde o sistema político autoritário à situação dos ocidentais e à perseguição dos cristãos.
Em 1639, foi nomeado chefe do posto de Hirado (opperhoofd). Sob a sua liderança, os neerlandeses construíram e testaram peças de artilharia moderna, como os morteiros, que impressionaram o shogunato e contribuíram para consolidar a posição estratégica da Companhia no Japão. No entanto, a crescente suspeição das autoridades japonesas culminou, em 1640, na ordem para se demolirem todas as estruturas do entreposto neerlandês. Caron conseguiu salvar a missão e os seus homens graças à sua reputação, à ajuda de comerciantes japoneses e ao seu profundo conhecimento da cultura local.
Em 1641, foram transferidos para a pequena ilha artificial de Dejima, em Nagasaki, para onde os Portugueses tinham sido enviados entre 1570 e 1639 e onde os neerlandeses iriam permanecer isolados até à abertura forçada do Japão, em 1854.
Caron, porém, já havia deixado o Japão, escapando por pouco às represálias. Serviu ainda a Companhia em Ceilão, nas Molucas e em Formosa, onde foi governador. Subiu na hierarquia até se tornar director-geral da Companhia em Batávia — o segundo cargo mais alto da organização.
Perdeu a sua mulher japonesa (que morreu após a sua partida de Hirado), casou com uma rica herdeira neerlandesa e teve, ao todo, treze filhos. Vários deles receberam excelente educação; dois filhos da sua primeira união estudaram teologia em Leiden, e um tornou-se missionário nas Molucas.
Em 1651, regressou à Europa. Passou mais de uma década em relativa obscuridade até que, em 1664, foi chamado a Paris por Jean-Baptiste Colbert, ministro de Luís XIV, para liderar a recém-criada Compagnie Française des Indes Orientales.
Caron, já sexagenário, assumiu a direcção comercial da nova companhia, ficando encarregue de expandir a presença francesa no Extremo Oriente. Redigiu memórias, relatórios, planos diplomáticos e cartas-modelo para serem entregues ao imperador da China e ao shogun japonês.
Apesar dos seus esforços e da sua experiência inestimável, a companhia francesa enfrentou inúmeros obstáculos. A marinha francesa era frágil, quase todos os navios foram comprados em segunda mão na Holanda, e os comandantes estavam pouco preparados. Depois, a guerra entre França e Holanda, iniciada em 1672, comprometeu toda a operação.
Desanimado, sob suspeitas de má administração, em Setembro de 1672, François Caron embarcou no “Indien” - um navio de 38 canhões, da Companhia Francesa das Índias - rumo a França.
O navio de guerra francês “Indien”, originalmente batizado Le Jules, em homenagem ao Cardeal Jules Mazarin, fora uma embarcação da Marine Royale construída nos estaleiros de Toulon, na Provença, sob a direcção do mestre construtor Rodolphe Gédéon.
A sua quilha foi assentada em 1661, ano em que também foi lançado à água (em Julho) e oficialmente comissionado (em Novembro), representando o esforço francês em modernizar e expandir a sua marinha de guerra sob a orientação de Jean-Baptiste Colbert, durante o reinado de Luís XIV. O navio foi construído de raiz para fins militares e enquadrava-se na classificação francesa como um navio de “quatrième rang.”
O “Le Jules” media 113 pés franceses de comprimento ao longo do convés de artilharia (equivalente a cerca de 36,7 metros ou 120 pés imperiais), 26 pés de boca (8,44 metros) e 12 pés e 1 polegada de porão (3,91 metros), com um calado à ré de 13 pés (4,22 metros). A sua arqueação era de aproximadamente 700 toneladas.
A sua dotação inicial de artilharia consistia em 38 peças: 18 canhões em bronze, no convés inferior e 20 canhões em ferro no convés superior. Em 1665, o armamento foi reorganizado, com uma bordada equivalente a 104 livres francesas (cerca de 50,9 kg), composta por 2 canhões de 18 libras, 2 de 12 libras, 16 de 8 libras, 2 de 6 libras e 2 de 4 libras. Este armamento, embora modesto quando comparado com os grandes navios de linha de primeira e segunda ordem, era adequado às missões típicas de um navio de quarta ordem: patrulhamento, escolta de comboios, transporte de tropas e apoio logístico a operações coloniais ou diplomáticas.
Ao longo da sua carreira, o navio foi comandado por vários oficiais superiores da marinha francesa. Entre 1662 e Dezembro de 1663, esteve ao comando de Pierre Certaines de Fricambault, com o posto de chef d’escadre. Foi depois entregue ao comando de Hector des Ardens (1663–1664), seguido de Bouillon (1665–1666), Jean Érard, Senhor de Belle-Isle (1666), Jean-Baptiste Valbelle, cavaleiro de Valbelle (1667), Gilles de la Roche Saint-André (1668), e finalmente, entre 1669 e 1670, esteve sob o comando de De Luche.
Estes oficiais, muitos deles oriundos da aristocracia naval francesa, participavam frequentemente em missões de prestígio, tanto no Mediterrâneo como no Atlântico, e estavam envolvidos em operações de projecção de poder, transporte de tropas e consolidação de alianças estratégicas.
Em Março de 1667 ou 1668, o “Le Jules” integrou uma esquadra encarregada de transportar tropas francesas para Portugal, numa missão de apoio ao reino português na sua guerra contra a Espanha. Esta operação inscrevia-se num contexto diplomático delicado, com a França a procurar afirmar-se como potência hegemónica europeia e a apoiar o Portugal restauracionista como forma de conter a influência espanhola. Contudo, com a assinatura do tratado de paz entre Portugal e Espanha em 1668, a missão tornou-se redundante, e o navio regressou a Brest a 11 de Julho desse ano.
A 24 de Junho de 1671, o navio foi oficialmente transferido para a nova Companhia das índias francesa e renomeado “Indien”, uma prática comum na marinha francesa da época, onde as renomeações dos navios refletiam alterações de comando, de afectação ou de doutrina estratégica.
A 5 de Abril de 1673, o “Indien” perde-se “num recife a três braças da superfície”, à entrada do porto de Lisboa.
No naufrágio perde a vida o veterano explorador e diplomata, então com 73 anos. Morrem também o comandante do “Indien”, o capitão Régnier du Clos, e mais 30 pessoas, entre tripulantes e marinheiros. Para além de François Caron, perde-se também a totalidade da sua fortuna, submersa nas águas do Atlântico, e perdem-se também diamantes no valor de 600.000 libras.
Um dos seus filhos, que o acompanhava na viagem, sobreviveu à tragédia, foi uma das 104 pessoas que se salvaram do naufrágio no Tejo. É o próprio Colbert quem escreve ao Rei, a avisá-lo da morte de Caron, enviando-lhe, sob forma de memória, o relato completo do naufrágio de Lisboa.
Quanto à viúva de Caron, deixada por este em França, conseguiu manter-se graças a uma pensão vitalícia concedida por Luís XIV - um gesto de reconhecimento deste pelos longos serviços de Caron ao comércio ultramarino europeu, primeiro ao serviço dos Países Baixos e depois de França.
No entanto, os tempos mudavam. Com a Revogação do Édito de Nantes, em 1685, e o endurecimento da perseguição religiosa contra os protestantes, a viúva de Caron optou por converter-se ao catolicismo, para poder permanecer em Paris. Os seus filhos, por sua vez, tomaram rumos distintos, guiados pelas suas convicções religiosas e pelas circunstâncias políticas: alguns permaneceram em França, outros procuraram liberdade de culto no Reino Unido ou nos Países Baixos.
Assim terminava, de forma dispersa, mas resiliente, o legado familiar de um homem que atravessou continentes, religiões e impérios, deixando uma marca singular na história do encontro entre o Ocidente e o Japão. E uma fortuna nas areias da barra de Lisboa.
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Colaboração de Alexandre Monteiro com a APP, texto respigado da página que o autor mantém no Facebook, intitulada "Um Mergulho na História".
Nesse espaço, o arqueólogo náutico e subaquático, também investigador universitário, mantém a secção "Um naufrágio por dia".
É dessa secção que respigamos o texto que aqui publicamos.
"Um Mergulho na História" trata de "Naufrágios portugueses no Mundo, património cultural subaquático de Portugal e Ilhas, arqueologia náutica e subaquática, piratas, corsários e tesouros, reais, percepcionados e imaginários submersos".
A visitar em https://www.facebook.com/mergulho.historia
Alexandre Monteiro é arqueólogo náutico e subaquático, investigador do HTC-CFE da Universidade Nova de Lisboa e membro da Academia de Marinha.
É pós-graduado em Mergulho Científico, instrutor de mergulho e mergulhador profissional, tendo projectos de arqueologia com as autarquias de Alcácer do Sal, Lagos e Esposende e, no estrangeiro, nos Emirados Árabes Unidos e na Austrália.
É consultor da UNESCO, do governo de Cabo Verde e da Missão de Combate aos Crimes contra o Património Cultural da OSCE.
É, há 25 anos, o criador das bases de dados relativos a naufrágios históricos de Portugal Continental, Açores e Madeira, bem como de Omã e Cabo Verde.
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