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Um Mergulho na História | Por Alexandre Monteiro
A 1 de Março de 1893, o naufrágio do vapor «Gomes VII»
O naufrágio do vapor “Gomes VII” é um dos episódios mais dramáticos da navegação na barra do Douro no final do século XIX, ilustrando os perigos da foz desse rio, notórias pela sua força e imprevisibilidade, bem como pelos inúmeros rochedos e baixios que apresentava a quem queria aportar àquela cidade.
O “Gomes VII” foi construído em 1877 pelos estaleiros Hall, Russell & Co. Ltd. de Aberdeen, sob o nome “Banchory”, para a J. & A. Davidson, também de Aberdeen, sob a qual serviu até ser vendido, em 1884, à Davidson Steam Shipping Co. Ltd. Com 576 toneladas de arqueação bruta, o navio media 53,2 metros de comprimento, 7,9 metros de boca e 4,4 metros de pontal, sendo propulsionado por um motor compósito a vapor.
Em 1887, foi novamente vendido à Grampian Steamship Co. Ltd, que, por sua vez o vendeu, em 1891 ao armador Alonso Gomes, de Lisboa, que o renomeou “Gomes VII”.
Alonso Gomes, nascido a 17 de Janeiro de 1819 em Mértola, no distrito de Beja, destacou-se como o maior industrial da região na segunda metade do século XIX. Filho de imigrantes espanhóis da província de Huelva, fundou com seus irmãos Manuel e José a sociedade Alonso Gomes & C.ª, dedicando-se à exploração mineira. Entre 1861 e 1886, obteve mais de 40 concessões de minas de manganésio, cobre, chumbo e antimónio no distrito de Beja e em várias outras regiões de Portugal, empregando mais de 500 trabalhadores e tornando-se o principal exportador de minério para Newcastle, Reino Unido. As suas minas beneficiavam de escoamento fácil pelo rio Guadiana e pela via-férrea, explorando a mão-de-obra barata e vendendo a produção no mercado estrangeiro.
Para garantir o transporte do minério, fundou nos anos 70 do século XIX a Empresa de Navegação a Vapor para o Algarve e Guadiana, uma das primeiras companhias de navegação a vapor em Portugal, que operava com vapores de grande porte. A empresa detinha o monopólio estatal das carreiras comerciais de passageiros e mercadorias entre Mértola e Vila Real de Santo António, e entre Lisboa e os portos do Algarve, beneficiando de generosos subsídios estatais. Estes vapores faziam rotas regulares para o Brasil, África Ocidental e Oriental, Reino Unido e França, consolidando a sua posição na navegação a vapor portuguesa.
Alonso Gomes destacou-se também como um grande benemérito e líder comunitário, investindo em melhoramentos públicos no distrito de Beja, incluindo a construção e restauro de infraestruturas religiosas, culturais e urbanas, além de contribuir significativamente para hospitais e instituições de caridade. Pelos seus feitos, foi agraciado pelo Rei D. Carlos I com a Grã-Cruz da Ordem Civil do Mérito Agrícola e Industrial – Classe Industrial.
Mas voltemos ao “Gomes VII”.
O sinistro ocorreu na tarde de 1 de Março de 1893, numa altura em que a barra do Douro fora reaberta à navegação, após vários dias de interdição, devido à forte agitação marítima e à intensa corrente do rio Douro.
Pelas 10:30, os vapores noruegueses “Tide” e “Muller” cruzaram a barra sem incidentes. Pouco depois do meio-dia, o “Gomes VII” tentou também ele a sua entrada. Tudo parecia decorrer normalmente até o navio alcançar a área defronte ao farolim de Felgueiras, quando inesperadamente se desgovernou e foi arrastado pela força da corrente, encostando perigosamente para o sul até encalhar no cabeço da restinga do Cabedelo, a cerca de 200 metros da costa.
A bordo, foram içados sinais de socorro, indicando haver problemas na casa das máquinas. Em resposta, os rebocadores “Veloz” e “Hércules” tentaram auxiliar, mas todos os esforços para lançar cabos falharam.
O “Gomes VII” foi então brutalmente fustigado pelas ondas, girando sobre o próprio eixo até ficar com a proa voltada para oeste e a popa fortemente encravada na areia, impossibilitando qualquer manobra. Rapidamente, uma multidão de curiosos e socorristas, incluindo o Chefe do Departamento Marítimo do Norte e todos os pilotos disponíveis, reuniu-se no Cabedelo para assistir ao desenrolar dos acontecimentos.
Por volta das 14:30, foi lançado um cabo de vaivém, utilizando-se um foguetão, cabo esse que foi amarrado ao mastro grande do navio. O salvamento dos 17 tripulantes, incluindo o capitão Manuel da Costa e o piloto da barra Francisco Guerra, começou às 16:00. O cesto de salvação foi utilizado 18 vezes, numa operação tensa e arriscada, para transportar os homens durante os 110 metros de distância que os separavam das embarcações mais próximas, um barco salva-vidas e um saveiro da Afurada, corajosamente tripulado por 10 pescadores locais, que depois os recolhiam.
Um dos momentos mais críticos do resgate envolveu Francisco Faísca, que ao ser puxado pelo cabo de vaivém caiu na água, desaparecendo momentaneamente sob as ondas e sob os barcos de salvamento, o que provocou gritos de aflição na multidão. A coordenação em terra conseguiu, no entanto, puxar o cabo mais rapidamente, salvando-o ileso. O último a abandonar o navio foi o capitão Manuel da Costa, às 17h14, concluindo o salvamento sem perda de vidas, um feito notável considerando a violência das ondas e o estado precário do navio.
O “Gomes VII” transportava, para além de vinho e aguardente, 800 sacas de cevada, 400 sacas de limpadura, 900 de purgueira, 50 sacas de açúcar, 50 de café, 80 pipas de vinho e álcool, 70 fardos de tabaco em folha, além de farinha e tremoços, tudo produtos destinados a diversos comerciantes do Porto.
Com o navio seguro em várias companhias estrangeiras, os trabalhos de descarga começaram na noite de 1 de Março, com o objetivo de aliviar o peso do casco encalhado. Para tal, foram utilizados o rebocador “Leão” e seis grandes barcas.
No entanto, por volta das 23:30, as amarrações do “Gomes VII” rebentaram. O navio, novamente descontrolado, foi empurrado pela corrente, garrando para o sul, onde colidiu com as pedras denominadas "Folga Manada", acabando por adornar para bombordo.
Ao amanhecer do dia 2 de Março, o casco estava partido ao meio: a parte da ré, até ao passadiço, permanecia imóvel, enquanto a parte da proa balançava nas ondas, sendo progressivamente destruída.
Nos dias que se seguiram, a carga foi arrojada às praias pela força do mar: tabaco, pipas de vinho e álcool, cevada, purgueira e até farinha chegaram ao areal do Cabedelo, que era vigiado por 20 soldados da Guarda-Fiscal, sob o comando do capitão Cabreira. Para evitar pilhagens, uma patrulha de cavalaria percorria a linha de costa até Gulpilhares, enquanto os barcos da alfândega fiscalizavam a área marítima.
Embora a operação de salvamento tenha sido um sucesso humano, o “Gomes VII” foi considerado uma perda total. Até 8 de Março, os destroços continuavam a ser progressivamente destruídos pelo mar. Destes, foram retirados diversos objetos de mobília, trem de cozinha, garrafas de bebidas e fardos de mercadorias. Os últimos salvados foram arrematados a 14 de março, neles se incluindo o casco, tudo por 331$000 réis.
Uma semana depois, um jornal local noticiava que, do naufrágio, já nada se via e que a companhia de Alonso Gomes ponderava comprar um outro vapor, que tencionava nomear “Gomes VIII”.
Se calhar não foi boa ideia. Se o “Gomes V” naufragara em 1888, nas ilhas Scilly e o “Gomes VII”, como ficou ditou, acabara os seus dias de mar em 1893, o novo, ainda por vir, “Gomes VIII”, haveria de se perder no dia 1 de Abril de 1899, naufragando nas Berlengas, quando seguia do Porto para Lisboa. A tripulação compunha-se de 17 homens e levava 32 passageiros, dos quais morreu um.
Mas isto sabemos nós, porque estamos no futuro, muito longe já de 1893. Quanto a Alonso Gomes, que falecera dois anos, a 17 de Junho de 1897, deixara à família um vasto património, incluindo 46 herdades no Alentejo e diversos prédios urbanos - além da tal frota de vapores, que representava três quartos da navegação a vapor em Portugal. O seu espólio documental encontra-se actualmente à guarda do Arquivo de Beja.
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Colaboração de Alexandre Monteiro com a APP, texto respigado da página que o autor mantém no Facebook, intitulada "Um Mergulho na História".
Nesse espaço, o arqueólogo náutico e subaquático, também investigador universitário, mantém a secção "Um naufrágio por dia".
É dessa secção que respigamos o texto que aqui publicamos.
"Um Mergulho na História" trata de "Naufrágios portugueses no Mundo, património cultural subaquático de Portugal e Ilhas, arqueologia náutica e subaquática, piratas, corsários e tesouros, reais, percepcionados e imaginários submersos".
A visitar em https://www.facebook.com/mergulho.historia
Alexandre Monteiro é arqueólogo náutico e subaquático, investigador do HTC-CFE da Universidade Nova de Lisboa e membro da Academia de Marinha.
É pós-graduado em Mergulho Científico, instrutor de mergulho e mergulhador profissional, tendo projectos de arqueologia com as autarquias de Alcácer do Sal, Lagos e Esposende e, no estrangeiro, nos Emirados Árabes Unidos e na Austrália.
É consultor da UNESCO, do governo de Cabo Verde e da Missão de Combate aos Crimes contra o Património Cultural da OSCE.
É, há 25 anos, o criador das bases de dados relativos a naufrágios históricos de Portugal Continental, Açores e Madeira, bem como de Omã e Cabo Verde.
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