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Um Mergulho na História | Por Alexandre Monteiro
No dia 12 de Fevereiro de 1787, o naufrágio do navio «Le Calonne» na costa do Alentejo Litoral
A dissolução, em 1769, da Companhia Francesa das Índias Orientais deixou um vazio no comércio oriental da França.
Durante a década de 1780, o país procurou formas de competir com o domínio britânico na Índia. O Tratado de Paris de 1783, que encerrou a Guerra de Independência dos Estados Unidos, criou as condições para a reorganização do comércio colonial francês.
Nesse contexto, a Companhia das Índias de Calonne - também conhecida como Nova Companhia das Índias Orientais de Calonne - foi formalmente estabelecida em 1785, durante o governo de Charles Alexandre de Calonne, Ministro das Finanças de Luís XVI.
Com um capital inicial de 20 milhões de libras, recebeu, por um período de sete anos, o monopólio do comércio francês com o Oriente. Funcionando como uma empresa de capital aberto, com ações negociáveis, estabeleceu um acordo comercial com a Companhia Britânica das Índias Orientais, o que permitiu aos franceses ter acesso às mercadorias da Índia, sob novas condições, mais favoráveis.
No entanto, a companhia enfrentou dificuldades desde o início. Não só lhe faltavam os recursos financeiros necessários para competir de forma independente com os britânicos como, além disso, enfrentava uma forte oposição interna, em França, da parte dos comerciantes nacionais, que defendiam o livre comércio. A falta de financiamento e as dificuldades operacionais levaram a falhas no cumprimento dos seus compromissos comerciais.
Em Janeiro de 1787, um dos navios dessa companhia, que detinha o mesmo nome - “Le Calonne” – navegava ao largo dos Açores. Era um navio de 400 toneladas e estava armado com 10 canhões de calibre 6.
O “Le Calonne” provinha originalmente de Pondicherry, na costa oriental da Índia, tendo feito escala em Moka, nas ilhas Maurícias, de onde zarpara a 13 de Setembro de 1786 com uma carga de café. Por Jean Jacques Naux, o capitão do navio, ter morrido em Moka, a 10 de Abril de 1786, seguia no comando o 1º tenente François Marin Dumoulin.
A sua paragem final, antes de se encontrar em apuros ao largo dos Açores, fora no cabo da Boa Esperança, onde embarcara alguns passageiros ingleses abastados. O seu destino final era o porto de L’Orient, França.
A 29 de Janeiro de 1787, o “Le Calonne” rebentou os machos do leme junto à ilha de Santa Maria. Sem poder proceder ao conserto do leme, a tripulação tentou meter rumo a Cádiz.
Dois dias depois, quando o vento se torna mais favorável para uma singradura directa até ao Porto de Lisboa, o capitão Dumoulin traçou rota para a capital portuguesa, enquanto a tripulação içava o leme para a coberta e tentava proceder a uma reparação de emergência, no que não tem grande sucesso.
Tentando manter rumo apenas pelo colher das velas, o navio vai-se desviando para sul. Na manhã do dia 12 de Fevereiro de 1787, quando estavam à latitude de 38.1 graus, sensivelmente defronte ao cabo de Sines, avistam terra pela amura de sotavento. Na altura o mar corria em grandes ondas, impelidas por rajadas de vento oeste.
Em aflição, o navio dispara os canhões a cada dez minutos. Às 12:30, vislumbram terra pelo bordo; às 14:00, pela vante. O navio aproxima-se rapidamente da costa, que todos a bordo verificam ser batida por grandes vagalhões. A única solução encontrada para travar a fatal marcha em direcção ao encalhe foi a de lançarem ao mar 3 âncoras.
Às 17:00, largaram uma âncora, num fundo que encontraram a 58 metros. Às 17:15, uma outra. Finalmente, às 18:15, largaram a terceira, a de misericórdia. Como nenhuma das âncoras, nem as três em conjunto, seguravam o navio, começaram a abater os mastros, o principal e o de mezena. Quando os conseguiram deitar abaixo, o navio encalhou na areia da praia, em plena rebentação.
As ondas varreram tudo o que estava no convés, lanchas e escaleres incluídos, enchendo-se todas as cabinas de água, o que levou os passageiros ingleses – três homens e uma mulher, com duas crianças – para o convés.
Encalhado o navio, a cadeia de comando quebrou-se, com os marinheiros a dirigir-se às malas dos passageiros, na cabina grande, para as saquear, enquanto se embriagavam, deixando no convés apenas o cirurgião de bordo e os referidos passageiros.
Às 20:30, quando a maré estava a baixar, um dos passageiros, o tenente Porter, apercebeu-se que se podia saltar para a praia, o que fez, chegando são e salvo à areia seca. Alguns marinheiros tentaram imitá-lo, mas foram arrastados pelas ondas e morreram afogados.
Nessa altura, o “Le Calonne” partiu-se em dois, entre os cotos do mastro do traquete e o principal, não deixando outra alternativa aos sobreviventes que não saltarem para a areia, pelo que, às dez da noite, se encontraram todos a salvo na praia, à excepção das duas crianças e de uma rapariga negra que acharam por bem permanecer nos restos do navio até ao amanhecer, na companhia de alguns marinheiros, que ocuparam essa noite com o saque das bagagens.
De manhã, os sobreviventes, transidos de frio, procuraram, debalde, uma habitação, conseguindo apenas encontrar um casebre de um camponês a 4 milhas de distância do local do naufrágio.
Entretanto, tinham chegado os marinheiros saqueadores, carregados com moedas e roupas dos passageiros, que começaram a vender à população local. Denunciados os marinheiros à justiça local, esta nada fez, tendo em conta que todos eles se encontravam armados com facas.
Nessa noite, os passageiros sobreviventes chegaram à casa de um padre, onde deixaram a mulher e as crianças, retornando ao local do naufrágio, onde encontraram o navio feito em pedaços.
No dia seguinte, parte dos marinheiros seguiu embarcada para Lisboa, enquanto os passageiros seguiram num carro de bois, para Melides, de onde escreveram ao cônsul britânico, um tal de Mr. Williamson, pedindo assistência. No entanto, antes que este chegasse lá, um outro cidadão britânico, Charles Peasly, enviou-lhes um escrivão, com dinheiro e roupa, levando-os depois para a sua residência em Lisboa.
Dos passageiros, sobreviveram ao naufrágio os ingleses o tenente Porter, o casal Henderson, as suas duas filhas e a rapariga negra; e o francês, D´Erff.
Morreram os passageiros Villiard, francês, o tenente Gilbert, britânico, que vinha de Bengala; e um criado do oficial inglês que sobreviveu.
Da tripulação, morreram no naufrágio, o seu comandante, o 1º Tenente François Marin Dumoulin; o 2º Tenente Pierre Martin Bedel Villet David; os guardas-marinha Pierre De Sanguinet e René Le Valois; o contramestre Joseph Le Gal; o mestre carpinteiro Pierre Allio; o mestre calafate Jacques Mouillec; o mestre veleiro, Pierre Desvergers; o tanoeiro Joseph Person; o 2º Cirurgião Jean Marie Le Bour; o carpinteiro Louis Seveno e os marinheiros
Joseph Février; Michel Corbel; Pierre Michel; Denis Guégan; Guillaume Le Gal; Pierre Alain Mellac; o cozinheiro-padeiro Jean Philippes; e os grumetes Dominique Vauhardy; Patrice Laborde; Julien Audren; Claude Labbé; Louis Bonamy; Villars, um voluntário, ex-tripulante da fragata “La Calypso”, e Martin Georges, soldado desertor das tropas holandesas.
Da tripulação, sobreviveram ao naufrágio, o mestre da equipagem Jacques Méotté, o contramestre Olivier Dabouis; o carpinteiro Louis Marie Le Meaux; o calafate Toussaint Thomas; o cozinheiro Louis Mentec; os marinheiros Joseph Gavric, François Le Bolay, Jean Baptiste Toussaint, Jean René Saint-Germe e René Joseph Delinotte; e os grumetes Jean Louis Morice, Nicolas Lautour, Olivier Allain, Armel Rio, Augustin Le Deot, Philippe Parfait e Mathurin Huissiere.
Contas feitas, perdeu-se no naufrágio uma carga de diamantes e pedras preciosas que traziam os passageiros britânicos, cujo valor os ingleses não confessaram.
O valor total dos 1397 fardos de café e dos restantes produtos orientais, avaliados em 355.371 libras, perde-se também.
Com este naufrágio, a Companhia Calonne sofreu um grande impacto. Nos anos seguintes, com a crescente pressão dos comerciantes franceses e a crise financeira da monarquia, a companhia lutou para se manter à tona. Em 1790, perdeu o seu privilégio comercial e, como parte das reformas económicas da Revolução Francesa, foi dissolvida.
O lugar da perda deste navio é referido contraditoriamente por diversas fontes. No documento emitido por Pina Manique em Lisboa, aquando da revista dos marinheiros acusados, diz-se que o navio “naufragou nas costas de Mar de Porto covo, termo da Villa de Sant Jago de cassem”. A Gazeta de Lisboa indica que o mesmo se deu defronte a Santo André.
Tendo em conta a descrição do naufrágio, feita pelo sobrevivente Henderson, e acreditando nas milhas percorridas pelos sobreviventes e na latitude da perda, julgamos que este naufrágio terá ocorrido entre a praia da Sancha e a praia do Lago, a norte do cabo de Sines.
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Colaboração de Alexandre Monteiro com a APP, texto respigado da página que o autor mantém no Facebook, intitulada "Um Mergulho na História".
Nesse espaço, o arqueólogo náutico e subaquático, também investigador universitário, mantém a secção "Um naufrágio por dia".
É dessa secção que resgigamos o texto que aqui publicamos.
"Um Mergulho na História" trata de "Naufrágios portugueses no Mundo, património cultural subaquático de Portugal e Ilhas, arqueologia náutica e subaquática, piratas, corsários e tesouros, reais, percepcionados e imaginários submersos".
A visitar em https://www.facebook.com/mergulho.historia
Alexandre Monteiro é arqueólogo náutico e subaquático, investigador do HTC-CFE da Universidade Nova de Lisboa e membro da Academia de Marinha.
É pós-graduado em Mergulho Científico, instrutor de mergulho e mergulhador profissional, tendo projectos de arqueologia com as autarquias de Alcácer do Sal, Lagos e Esposende e, no estrangeiro, nos Emirados Árabes Unidos e na Austrália.
É consultor da UNESCO, do governo de Cabo Verde e da Missão de Combate aos Crimes contra o Património Cultural da OSCE.
É, há 25 anos, o criador das bases de dados relativos a naufrágios históricos de Portugal Continental, Açores e Madeira, bem como de Omã e Cabo Verde.
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